O frio, o despojar e o despir

>> sábado, 17 de julho de 2010


Eu vim de uma terra que o calor é o mote o ano todo. Contudo, não é tão quente quanto algumas pessoas podem supor, ao menos Fortaleza não o é. É antes uma terra de temperatura agradável, variando entre 27º e 30º o ano todo e com muito vento e brisa do mar. Quando a temperatura cai um pouquinho, as pessoas logo procuram aquele casaquinho leve, aparecem mangas compridas, braços vestidos e uma procissão de guarda-chuvas desajeitados.

De alguma forma, o frio chegou ao Rio e para mim é uma experiência interessante. Já vivi outros invernos, os de Brasília, inverno seco e violento. Mas os do Rio são peculiares. Metade parece setembro em Fortaleza e a outra metade algum filme clichê em Londres num outono moderado.

Pois bem, existe um pensamento corrente, que tenta afirmar a ideia de que, em cidades praianas (Fortaleza, Rio), as pessoas tendem a se cobrir pouco, praticamente com "as vergonhas de fora", que nem nossas índias descritas pelo pudico Caminha no famigerado "primeiro texto literário brasileiro". Uma ova, mas tudo bem.

Decerto, em Fortaleza usa-se muito os shorts, as bermudinhas, as mini saias, muito pouco as micro saias e quase nunca as nada saias (descobri que existe isso aqui no Rio e não só nos clips de música eletrônica), os vestidinhos de verão (os mais queridos) de cambraya de linho e rendas da terra são a cara de Fortaleza, mas no geral, não é um painel de nudismo, as carnes muito expostas, sabe como? Fortaleza é muito provinciana, em instâncias diversas. O Rio já não é.

Por estas e outras cousas, houve um certo espantamento meu (e das outras pessoas comigo rs) na postura e posicionamento. A gente pode entender como choque cultural, que ultrapassa um pouco o fato de que algumas pessoas odeiam o meu sotaque e as vezes, lamento informar, a recíproca é verdadeira, porque não me agrada às ouças gente que fala que nem ogro, seja com acento de Porta Alegre, de São Paulo, de Fortaleza, do Rio, etcetera.

Já falei algumas vezes por aqui da minha professora de francês francesa. Uma figura aracnídea da Sorbonne, de olhos azul turquesa, que escolheu, por encanto, viver no Ceará.

Ela veio bem jovem da França para o Brasil, conhecer o país como mochileira. E ela sempre falava do seu espanto quando chegou ao Rio. A imagem de mulheres de carnes fartas, com roupas bem menores que seus tamanhos, sem nenhuma reserva ou constrangimento lhe marcara de verdade. Não era uma fala de censura da minha professora, era de encantamento com o que ela entendia como liberdade. Talvez tenha sido o Rio que a seduziu em primeiro lugar, depois as rendas brancas e o algodão cru do Ceará.

O certo é que, o Rio neste sentido, ainda parece aquele Rio que minha professora aracnídea experimentou.

É muito comum por aqui o despojar-se sempre, eu diria até que é uma postura.

Estava reparando que neste primeiro surto de inverno, em que a temperatura caiu cerca de dez graus, ao sair e observar as pessoas pelas ruas, você encontra meninas de pernas de fora, com micro shorts e casacos muito tímidos, que pouco ou mal lhe protegem do frio que chegou. De braços cruzados e senho fechado, de tão frio que é o vento. E este é um comportamento que se repete.

Óbvio que também encontraremos meninas que esperavam um calorzinho e são pegas por chuva e frio, mas a postura é diferente. Estas outras meninas de que falei têm um desejo de se despir que é um tom a mais do despojar-se da carioca, como a gente entende.

O primeiro inverno que passei aqui, lembro de uma manhã que fazia 14º e fui levar as minhas meninas à escola, todas de uniforme de inverno. Contudo, ao chegarmos, nos deparamos com uma maioria absoluta de outras meninas, que trajavam o uniforme de verão, um short devidamente encurtado, que elas enrolam pelo cós, até subir da altura normal, um pouco acima dos joelhos, até um palmo de distância entre o cós e a barra rs. E morrendo de frio.

Tentei (e ainda tento) entender esta postura, sabe? Não me parece somente uma postura hormonal de chamar a atenção dos meninos. Também não é uma semiótica pensada, uma panfletagem corporal, um anti-feminismo. Ou talvez seja tudo isso junto, contudo reproduzido de forma involuntária, como um comportamento adestrado.

Talvez estas meninas se vistam (se dispam, na verdade) reproduzindo algo que foi pensado tempos atrás, talvez até bem antes da visita da minha professora da Sorbonne ao Rio. E esta imagem construída da mulher do Rio de Janeiro tenha sido criada, industrializada por alguma figurinha destas de gabinete, transformada em substrato de posicionamento, amálgama de um monte de posturas, que estas meninas nem ao menos se afligem em procurar entender, o porquê de passarem por tanto frio.


Bisous.

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